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Letras e Literatos

Onde a vida se completa

“(…)Como sou romântico e vou ser sempre, acho que a perfeição da natureza só está ao alcance do amor, porque pelo corpo, mesmo que pelo sexo, tudo se substitui e deturpa. O corpo é sujo e feito para para se ir estragando, de facto, como num certo liquidificador. Só o pensamento e a emoção nos podem redimir e fazer disto de existir algo dotado do que nos convença de transcendermos, como extrapolando expectativas e criando maravilha. Diria que o amor é o caminho mais imediato para a maravilha.

Quando Pedro reúne as quatro mulheres da sua vida, como auscultando o passado, procura de algum modo superar-se ao corpo e ao tempo e, desimportado já dos vírus e da brevidade, importa-se apenas com a intensidade, o significado genuíno de cada momento, de cada gesto, porque certamente o tamanho da vida de todos nós se mede assim. Temos a medida exata do quanto tivermos genuinamente amado alguém ou alguma coisa.

Acabei de ler o livro do Paulo Ferreira num comboio. Ao meu lado sentou-se um senhor de idade que se ajeitou calado e assim ficou por mais de uma hora. Quando um telefone tocou no bolso do seu casaco pediu-me: é a minha mulher, diga-lhe por favor que eu estou bem. Não sei ler, não consigo ver os botões. Carregue aí e diga-lhe que já estou no comboio, por favor. Atendi a chamada, expliquei que o senhor mo pedira para fazer, e que estava bem. Pensei que lhe passaria o telefone para que falasse diretamente com a esposa, mas la não me deu tempo. Ela respondeu: mande-o dormir, para chegar descansadinho. O homem respondeu-me: ela tem medo de ficar sozinha se me der alguma coisa. O livro do Paulo Ferreira, se o lerem atentamente, é todo ele sobre isto. Não termos ninguém. É como se ser ninguém. Ter de morrer, ao invés de completar.”

valter hugo mãe, excerto da autobiografia imaginária no Jornal de Letras de 6 a 19 de Abril de 2011

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